Episódio 10

04h40min A.M.
A temperatura agora estava insuportável, e uma devastadora camada de frio havia tomado toda a estrada que levava ao fim de Boston. As cigarras haviam cessado seu canto, e os latidos haviam sido descartados do cenário. A única coisa que se ouvia ali era o assustador chiado produzido pelos sopros do vento.
-O que esse demônio é capaz de fazer? – Riley estava sentado, com as pernas cruzadas, em meio ao asfalto. Vocês não sabem como ele queria ter trago um casaco e algumas meias bem quentinhas... E talvez um par de luvas de couro. Pelo menos, a calça jeans estava servindo para alguma coisa.
-Ele pode controlar as pessoas... – Marianne ainda se apoiava em Corbin. – Ele atua como uma sombra normal, assim como Burnstein... – A essa altura, o gato misteriosamente havia chegado ao local. – A diferença é que ele não se contenta em controlar apenas uma pessoa, o morcego pode comandar até uma população inteira...
* * *
-Uma população inteira? – Micka estava assustada, como de costume. – Você só pode estar de brincadeira...
Os jovens haviam conseguido entrar na casa. Por sorte, todas as portas e janelas ainda se encontravam em seus devidos lugares, ao contrário do sonho de May. Eles trancaram todas as passagens maiores, por onde o grande morcego provavelmente conseguiria ter passado. Paul e micka estavam agachados, embaixo de uma das janelas do primeiro andar da mansão.
-Infelizmente, não... – Paul ainda não estava com sua raiva sob controle, ele precisava vingar a morte de seu pássaro... E faria isso assim que possível!
-Pode me explicar uma coisa? O que essa tal serpente tem em comum com esta história toda?
-Muita coisa! O demônio do caos é responsável por todo e qualquer tipo de guerra que aconteça no mundo dos humanos. Sendo assim, para impedir a guerra, é preciso destruí-lo.
-Posso começar do início?
O rapaz assentiu.
-Bem, pra começar, que história é essa de “guerra do eclipse”?
-A guerra do eclipse... – Paul ergueu sua cabeça, olhando para o nada, como se estivesse revivendo todos os momentos de sua vida. – é quando o mundo espiritual, o mundo humano, e a maioria dos outros portais, se interligam, permitindo que ambos se unifiquem por algum tempo...
-Quer dizer... Humanos, espíritos, e sei lá o quê em um só mundo?
-Sim! E não é só isso. Os espíritos, almas, encarnados, entre outros, tem total controle e liberdade de seus poderes enquanto a guerra estiver acontecendo...
-Mas, porque tem o nome de “guerra”? E, se é algo assim, tão especial, porque ninguém nunca me contou... E porque ainda tem gente que não acredita em espíritos?
-Primeiro: Quando eu digo TODOS OS PORTAIS, eu quero dizer todos mesmo... Inclusive o...
- O inferno? – Micka sentiu um arrepio na nuca.
Paul balançou a cabeça, em afirmativa:
-Segundo: As pessoas que conseguem sobreviver tem todas as memórias da guerra apagadas pelos anjos do tempo. Não é obviou? Esta guerra não está na bíblia, então ninguém precisa saber de sua existência!
-Anjos do tempo? Existem diferentes tipos de anjos?
-Sinto muito... Não posso revelar nada que inclua o paraíso...
Mickaella cruzou os braços, revirando os olhos, em tom de impaciência.
-Apenas mais uma coisa: Porque você precisa matar May? Porque esta tal de Madellyne também era perseguida pelos encarnados?
-Sobre Madellyne, ela morreu antes da guerra... Mas... Sobre May... Bem... Eu já lhe disse o motivo...
-Não existe mesmo outra saída?
-Sinceramente... Espero que...
Algo gritou na escuridão da noite, impedindo o final da fala. O som logo desapareceu, mas um bater de asas ecoou a seguir.
-Ele não vai embora? – Micka estava ofegante. Em toda a sua vida, ela nunca imaginou ter que se esconder de um demônio/morcego gigante em uma mansão abandonada no meio do nada.
-Sim, assim que o sol chegar... Assim como os morcegos comuns. O problema é que, agora que ele registrou nossos cheiros, nos perseguirá até nos matar...
-Ah, claro... A vida já estava fácil demais, não é? – Micka sorriu, apesar do nervosismo. Paul devolveu o sorriso.

No andar de cima, May e Tie investigavam o quarto onde, nos sonhos, a garota encontrou o diário da lua crescente, os dois eram seguidos por Thor. Os móveis, no quarto, não eram os mesmos: Em um dos cantos havia um beliche de madeira apodrecida, no outro havia um armário completamente vazio. Mais nada!
-Eu me lembro... – May apontava para a janela que haviam trancado. – Havia uma escrivaninha... E este lugar estava infestado de sombras... E...
-Fique calma, garota! – Tie não estava sério, apesar da “ordem”. – Sabe quantas pessoas sonham com mansões que nunca viram antes, e que existem? Não precisa se preocupar com pequenos detalhes.
-Não está entendendo, Tie... - Desta vez, ela apontava para o beliche, cujos colchões estavam preparados com lençóis e travesseiros sujos. - Alguém está morando aqui!
-Não é possível, May. A casa está em péssimas condições... Não tem como um humano habitar este lugar...
A jovem caminhou até a porta, chegando ao corredor, e fazendo sinal para que Tie a seguisse:
-Eu não disse humano...
Os dois voltaram pelo vazio corredor, descendo as escadas e voltando ao decadente Hall. Micka e Paul continuavam agachados, com um medo transparente, embaixo de uma das janelas.
May havia se esquecido de como havia se sentido naquele local durante o seu sonho. Conforme retornava à sala de entrada, o mesmo medo a tomava. Momentaneamente, a Crommwell havia se lembrado da beleza de vestido que usava da última vez em que visitara este lugar.
Da última vez...
Um frio macabro encheu o ar do local, impedindo o raciocínio contínuo da bruxa. Algo havia partido a grande porta de entrada em milhares de pedacinhos de madeira. Mickaella e Paul levantaram-se, recuando alguns passos.
E lá estava ele... O grande morcego!
May, em um ato instantâneo, agarrou e tapou com a mão o focinho de Thor, lembrando-se do que havia acontecido ao corvo.
O morcego gritou mais uma vez, mas desta vez não levantou vôo. Desta vez, ele usou suas pernas para se locomover, aproximando-se de Paul e Micka aos poucos.
-Porque ele está vindo para cá? – A garota com cabelos de pontas verdes sussurrou.
-Deve ter sentido o cheiro de Sturk em mim!
Em apenas um segundo, Paul recordou-se da inconveniência cometida pelo demônio ao matar seu melhor e único amigo. Um ciclone de ódio e adrenalina nasceu no interior do garoto, fazendo-o se atirar em cima do grande morcego antes mesmo de conseguir pensar em seus atos.
-Paul! – O grito foi a reação de Mickaella.
Sem praticamente nenhum esforço, o demônio das sombras ergueu um dos braços, levantando Paul no ar, e jogando-o em direção à May e Tie. O rapaz voou, contra sua vontade, até bater nos dois jovens em frente à escada enferrujada.
Os três caíram no chão, perdendo os sentidos por um instante. Thor fugiu dos braços da Crommwell, latindo e rosnando, mais uma vez, para o grande morcego.
O animal de dentes ensangüentados gritou mais uma vez, e então voltou a perseguir o cachorro. Porém, utilizando as pernas ao invés das asas. Thor havia fugido. Desta vez, por uma abertura enorme na parede à esquerda da escada, resultando em uma sala lotada de móveis abandonados cobertos por panos beges. O cenário mais parecia um labirinto.
O demônio não perdia tempo! Ao passar pelos móveis, ele os transformava em dezenas de milhares de pedacinhos de madeira com as suas endurecidas garras.
-Ele vai pegar meu cachorro! – May sussurrou, enquanto Tie a ajudava a se levantar.
-O sol deve chegar daqui a alguns minutos... – Paul apoiou-se no canto do corrimão, voltando a ficar de pé. – Se esperarmos do lado de fora...
-Descarte essa idéia! - A jovem Crommwell aproximou-se do garoto de olhos azuis, encarando-o. – Eu tenho Thor desde os oito anos de idade, e muitas vezes ele me serviu como um amigo que eu não tinha! Não vou deixá-lo morrer para salvar minha vida!
-Você diz como se sua vida tivesse sido muito particular...
-E foi! É isso o que acontece quando não se tem uma mãe! É isso o que acontece quando seu pai passa 75% da vida viajando a negócios... –Mas ela sabia que o problema não eram as viagens. Seus olhos voltaram a se encher de lágrimas. – Eu nem me lembro dela... Não me lembro de seu rosto, ou das canções de ninar... Não me lembro nem de seu cheiro...
-May...
-Não! Cale a boca! Acha que sou idiota? Pelo pouco que ouvi, eu consegui deduzir a verdade... Consegui, Paul! Eu sei que a culpa por eu não ter uma mãe é sua e daquela vagabunda da Marianne! Vocês a mataram... Do mesmo jeito que pretendem me matar...
E é por isso que estão me protegendo da lua minguante! Por que precisam que minha vida permaneça ativa até a tal “guerra”, não é? Precisa me manter viva até o sacrifício!
-EU NÃO MATEI A SUA MÃE!
Ouviu-se mais um grito assustador, e então mais latidos. Bom! Isso quer dizer que Thor ainda estava vivo.
-Vocês podem parar? – Tie gritou, tapando os próprios ouvidos de sua fúria. – Depois resolvemos isso, agora temos que sair a não ser que queiram morrer!
-Viu só? – A veias eram visíveis nos braços e punhos de Paul. – Ouça o garoto!
-Mas não deixaremos o cão! – Tie concluiu.
-Vocês só podem estar brincando... Preferem salvar a vida de um animal a salvar as próprias?
-O discurso não era esse quando se tratava de Sturk!
Nesse instante o cão passou mais uma vez por eles, parando a corrida enfrente a escada, e passando pela grande abertura na parede, onde havia a porta de entrada há minutos atrás. Thor deixou a casa.
-Thor! – May empurrou Paul de leve, correndo atrás do cachorro.
Algo estourou na sala dos móveis. Mais um grito e o som de alguma coisa sendo empurrada substituíram o vazio da atmosfera.
-Vamos embora! – Micka gritou, saindo correndo da casa, ofegante.
Os dois jovens a seguiram.
Ao deixar a mansão, o refrescante cheiro do alívio tomou os pulmões de Mickaella. Voltando seu olhar para o céu, a jovem percebeu o nascimento dos primeiros raios alaranjados do sol.
-Não estamos esquecendo nada? – Tie parou. – Do tipo... Inna... Paula...
-Elas não estão aqui! – Exclamou Paul, andando em linha reta e desaparecendo em meio as arvores mortas.
-Ele nos abandonou? – Micka não acreditava nisso. Depois de uma noite inteira de terror, ele ia mesmo deixa-los em meio ao nada com um demônio?
-Aqui, galera! – May gritou, balançando um dos braços no ar, de cima de uma grande pedra. Thor estava ao seu lado.
-Claro... – Sussurrou a menina, prendendo seu cabelo em um rabo de cavalo, com uma pequena fita bege. – Qual é o problema em ficar em cima de uma pedra? O morcego não voa mesmo, não é?

Tie... Ajude-me... Micka...

-Inna? - Tie voltou a encarar a face apodrecida da casa, esquecendo de May e da pedra, seu coração disparou.
-O quê?
-Eu ouvi a voz de Inna! - Ele caminhou em direção à mansão, afobado. - Eu tenho certeza, Micka, ela nos chamou!
-Eu não ouvi nada! Tem certeza que...
-Sim! Era ela! - Tie corria agora, com passos frágeis e uma respiração vacilante.
-Elas não estão aqui, Tie. Você ouviu Paul!
Tarde demais. O rapaz já estava convencido... Além de estar passando pela entrada neste exato momento.
-Tie... - Micka enfrentou a mansão, e então enfrentou a pedra de May.
-Micka... - A jovem bruxa continuava acenando, com o cão ao seu lado.
E agora?
-Peguem eles! - Disse uma voz masculina, desvalorizando os pensamentos da garota.
Um grande grupo de pessoas sujas e desconhecidas, aparecidas repentinamente, começava a cercar a mansão, o jardim morto onde estava Micka, e a pedra onde estava May e seu animal.
-May... - Ela gritou.
As duas amigas trocaram olhares confusos.
* * *

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