Lua escura - Parte 3

Senti uma extrema náusea assim que o bafo de morte invadiu meu espaço. Quase sem sucesso, tentava afastar o garoto-tubarão pondo meus braços entre nós dois. Agora estávamos caídos na calçada, ele tentando apenas me envenenar, mas ainda não havia conseguido cravar os dentes em minha pele, graças a Deus.
Por um instante, ao desviar os olhos, percebi que outro indivíduo da qual não me recordava à memória distraiam May e Tie, com sua ira praticamente visível. Só então percebi que não teria algum apoio naquele momento... Teria de aprender a me livrar daquele defunto sozinho. Deixei um de meus braços entre meu corpo e o outro ser caído sobre mim, enquanto tentava pegar alguma das duas facas com o outro.
Ouvi os gritos à minha frente: “Largue-o!”, “May, o punhal, pegue o punhal!”, “estou tentando recuperá-lo!”. Minha pele formigou. Eu precisava ajuda-los, ou seria tarde demais. Preciso me livrar de Heath...

----------- Paul:

Enfim, alcancei uma das facas negras. Com algum esforço, consegui tirá-la de meu cinto, percebendo que meu outro braço estava a ponto de ficar dormente. Não me lembro de sentir alguém tão forte a ponto de me machucar. Mas, afinal, a culpa é do Halloween.
Consegui! , Pensei, erguendo um pouco a faca e enfiando sua lâmina de trinta centímetros na nuca do garoto morto. O mesmo lugar em que ele havia sido atingido há algumas semanas para conhecer a própria morte. Após alguns segundos joguei o corpo sem vida ao meu lado e observei-o desintegrar em uma luz enegrecida.
Levantei-me a tempo de ver May e Tie acabarem com três daqueles seres, que também desapareceram em uma luz negra. Os dois se puseram rapidamente ao meu lado, ofegantes assim como eu.
—Você está bem? — Perguntou-me a bruxa, ainda com o punhal na mão.
—Sim, e vocês?
—Precisamos sair daqui... — Rosnou Tie, também segurando sua arma. Só então me dei conta de que deveria segurar minha outra faca também, e assim a fiz. — Temos que nos esconder Paul!
— Eles nos encontrarão se nós nos mantermos parados em um lugar fixo, e então ficaremos cercados.
— E o que sugere? — Perguntou May.
— Vamos continuar fugindo, temos que encontrar os outros!
— Que outros? — A voz surgiu atrás de nós seguida por um riso maléfico.
Lentamente, nos viramos. Estávamos com medo de ver o que nos esperava, e com razão. E lá estava ela: A dama das aranhas. A mesma que o homem misterioso de aura branca havia matado para nós, na velha mansão.
Erguendo uma de suas mãos, a mulher trouxe a vida alguém que proporcionava realmente medo a nos três. Senti May repreender um grito assim que percebeu o que a dama estava fazendo, e Tie deu um passo atrás, parecendo ter ficado sem ar por um instante.
E então, a apenas alguns muitos poucos metros de distância, ele gritava de fúria. Pegou um grande machado prateado de seu cinto e gritou, o que realmente abalou nossos espíritos.
— Occ... Occino... — Conseguiu dizer May, antes de ter uma rápida paralisia.
— Eu gostaria de poder brincar com vocês... Mas preciso rever um velho amigo e seu pequeno tigre... — Um sorriso de prazer tomou a mulher, que logo voltou à realidade. — Occino, acabe com eles! — Gritou, antes de desaparecer em uma fumaça quase invisível.
O gigante começou a vir em nossa direção, com o temível machado em suas mãos, quando algo inusitado aconteceu: Uma espécie de ave desceu dos céus e perfurou um dos olhos do monstro, que deixou a arma cair no asfalto, o que chamou a atenção dos moradores. Enfim, eles pareceram perceber que havia algo de errado, e todos começaram a correr.
A rua se tornou um caos! Mães pegando seus filhos fantasiados e se enfiando no meio da multidão que tentava fugir; Motoqueiros buscando suas motos e as usando para ter alguma vantagem na fuga, já que havia muita gente correndo para se usar algo grande como um carro. Até alguns policiais que ali havia tentavam atirar sem êxito no espírito mercenário, mas logo entraram em pânico e resolveram fugir com o resto dos desesperados. Em maio ao caos, uma das casas começou a pegar fogo, e o mesmo tentava se espalhar pelas demais moradias.
A ave novamente desceu até o gigante, mas agora não havia conseguido provocar nenhum ferimento. Só então percebi porque era tão difícil vê-la voar: Ela era negra. De um negro tão intenso quanto a noite, e agora vinha em nossa direção rapidamente.
—Sturk! — Gritou May, e então percebi que era verdade.
Meu coração disparou. Era como ter uma grande parte da minha vida de volta em meus braços. Há muito tempo que minha família se resumia a este fiel pássaro que agora pousara em meu braço e que eu acariciava com felicidade suficiente para acender todas as lâmpadas de Boston. O tempo parou por alguns segundos, mas então a realidade me puxou de volta quando Sturk levantou voo e, mais uma vez, tentou causar algum dano ao grande espírito materializado.
Sturk voava de um lado para o outro. O que não machucava quase nada no monstro, mas o deixava desnorteado... E cada vez mais irritado. O pássaro quase foi atingido uma vez, mas então dois outros animais apareceram correndo pela rua, também rodeando o gigante. Agora eram Sturk, Thor, e Owllie nos ajudando a ganhar tempo. De qualquer forma, ambos estavam sem seus divinos poderes.
—Precisamos sair daqui, com certeza outros materializados já sentiram nossa presença! — Sussurrei para os outros, mesmo não querendo deixar minha aura com esse horrível monstrengo.
—Precisamos encontrar Micka e os outros! — Sugeriu-me May, que parecia ter recuperado os sentidos.
Tie, de repente, pousou a mão sobre a cabeça e fechou os olhos. Parecia estar sentindo algum tipo de dor, talvez enjoo, pois teria caído se eu e May não tivéssemos sido mais rápidos. Assim que abriu os olhos, percebi o que estava havendo. Lembro-me bem dessa dupla na minha geração, e só agora havia percebido que Tie fazia parte da nova dupla de mensageiros.
—Inna está falando comigo... — Confessou, um pouco mais ofegante que a três minutos atrás. Os mensageiros não perdem seus poderes de contato no Halloween, mas sentem uma dor mais forte a cada vez que a usam. Ainda mais esses dois, completamente destreinados. — Paula está com ela e Micka com sua mãe e Isa, as cinco acabaram de ver a multidão que saiu correndo desta rua.
—Diga a elas que corram para qualquer lado, e que se separem em duplas, assim seu cheiro ficará mais fraco aos materializados.
Observei o garoto quase desmaiar mais algumas vezes, e um pequeno corte se abriu sozinho em seu braço, por onde escaparam algumas poucas gotas de sangue. Após algum tempo, ele havia voltado a si.
—Micka e Inna estão indo para a escola, enquanto Paula, Jeniffer e Isa vão voltar até a casa de uma das duas para pegarem algo que lhes sirva como armas. — Tie enfim notou o corte em seu braço, mas expliquei rapidamente o porquê de ele estar ali.
—Vamos sair daqui, estamos parados há muito tempo...
—O diário! — gritou May, assustando a mim e o outro garoto. — Alguém na multidão pegou o diário da minha mão! Eu não havia percebido... Mas... Eu preciso daquele diário! Eu tenho que... Eu preciso... AMY! — de repente a garota mudou de um estado assustado e nauseado à um completamente raivoso e decidido. —EU VOU MATAR AQUELA DESGRAÇADA!
—Não foi Amy quem roubou o diário! — afirmou outra curiosa voz. E, esta, eu reconheceria em qualquer lugar. Assim que me dei conta, a senhora já estava abraçando May, que não compreendia absolutamente nada.
—Senti tanto a sua falta... Mas... Você cresceu tanto... — Madellyne agarrava com força sua neta, e as lágrimas rolavam por suas maçãs bem definidas do rosto. — Se eu pudesse estar protegendo você todos os dias... Se eu não tivesse... Se eu...
—Vovó... — May, então, percebeu quem era aquela mulher que sentia tanto afeto por ela. Ela não conheceu aquela mulher, mas sentia quem era. — Não se culpe. A senhora conseguiu me proteger, vovó. Eu estou aqui agora, viva, saudável. Talvez um pouco atordoada e confusa com tudo, mas estou bem!
—Ah, graças a Deus... — a mulher desfez o abraço, passando mais algum tempo com as mãos no rosto da garota.
—Uma geração inteira se passou, e a velha continua me ignorando... — Brinquei, estampando um sorriso no rosto. Ver aquela senhora bem na minha frente, depois de tanto tempo, não podia me fazer deixar de pensar em sua linda filha...
—Oh, Paul, querido! — Madellyne correu para mais um abraço, e então senti um arrepio na nuca. Suas mãos continuavam macias e quentes, como as de uma avó apegada a sua família. Seu cheiro, de hortelã, continuava tão relaxante como anos atrás. Aquela ali, que me abraçava, era a mesma jovem valente e caridosa que, há tanto tempo, havia salvado minha vida tantas vezes. Só então percebi o papel de Jennifer em toda essa história. Assim como Madellyne era na minha época, a mãe de Micka havia, sutilmente, recebido o brilhante papel de protetora desta nova geração. — vejo que tem uma leve tendência a herdeiras Crommwell... — Disse, com um sorriso que me deixou completamente vermelho de vergonha. — Acalmem-se, estou apenas brincando. E você... — Disse, apontando o indicador para Tie. — É um dos mensageiros... Bom, desejo-lhe muita sorte, vai precisar...
Observei Tie gelar como um picolé de coco. Sem dúvida, o destino reservaria algo péssimo para sua vida. Afinal, todo poder gera um custo. Eu sei bem disso... Era um dos mensageiros de minha geração.
—Precisamos sair daqui! — Voltei a dizer, chamando a atenção das três figuras a minha frente.
— Sem dúvida, — Concordou a avó de May. —Eu preciso encontrar a bruxa dos aracnídeos, ela é uma das punidas que voltou sem permissão pelo portal. Por isso estou aqui, para completar esta missão. Mas, May, não desista! Amy não pode pegar o diário de forma alguma, entendeu? Ela pode ter uma aura roxa, mas seu espírito é tão negro quanto a magia de Marianne. Guarde-o com você sempre!
A mulher entregou o livro para sua neta, que implorava para que sua morta avó ficasse com ela até o fim da noite. Tempo perdido: a senhora já havia desaparecido, deixando para trás um pouco de sua fumaça rosada que logo se desfez no ar.
— Não podemos deixar Occino por aí! —Disse Tie, fazendo-me virar para olhar o gigante mais uma vez, cercado pelos quatro animais que tentavam deixa-lo tonto. — Espere... Aquele é o gato... Aquele é Burnstein!
E era verdade. O gato preto agora estava aliado às demais mascotes, correndo e saltando de um lado para o outro, atrasando e até distraindo o tal monstro mercenário. Isso só deve querer dizer que Marianne deveria estar por perto.
—VAMOS! — Gritou May, apontando para duas cabeças que, por meio de algo que parecia um buraco negro no terreno de uma das casas, saíam de baixo da terra.
Assenti para os outros dois, simbolizando que deveríamos correr. E então o fizemos. Não paramos por muitas quadras, ambas completamente vazias e gélidas, até que vimos um casal com seu filho fugindo de um materializado adulto, com muitos músculos e uma roupa esfarrapada. Tinha a cabeça raspada e muitas tatuagens. Soubemos que era um materializado apenas pela arcada dentária reluzente à luz prateada da lua, que parecia segui-lo.
Tie e May prepararam seus punhais, e eu segurei firme meu par de facas. Assoviei, sempre com cuidado para não chamar atenção demais, e observei enquanto o ser voltou o olhar verde escuro para nós e passou mudou sua rota, correndo em nossa direção. Não consegui esperar: Assim que ele estava a apenas cinco passos de nós, me joguei em cima dele, com as facas erguidas, perfurando sua testa e seu peito. Esperei que caísse sem vida no chão e peguei as facas de volta. Estas que eu limpava na minha camisa negra (e, agora, com manchas vermelhas inclusive em suas longas mangas). Pensei em ironizar um pouco, me gabando com meus dois amigos pelo meu desempenho, mas eles travavam sua própria batalha.
May, que prendera seu diário na parte de trás do cinto (após aperta-lo mais um pouco), brigava com dois dos materializados, enquanto outro, uma mulher de olhos negros e aparência de uma madame metida de Nova York, prendia Tie no chão, tentando mordê-lo. Mas, sua faca estava em sua mão, porque não atacava? Porque não... Ah, meu pai, não consigo acreditar.
Assim que percebi que o garoto não tentaria matar a mulher, cravei minhas duas facas nas costas dela, que caiu molenga em cima de Tie. Após recuperar minhas armas, chutei o corpo para a direita e ofereci a mão para que Tie se levantasse.
—Amigo, não existe cavalheirismo com essas coisas! — Disse a ele, que abaixou a cabeça, envergonhado. — Apenas tome cuidado... Lembre-se de que não se tratam de pessoas normais. Se não mata-las, elas te matam.
— SERÁ QUE OS DOIS CAVALHEIROS REAIS PODEM ME OFERECER ALGUM SUPORTE? — May gritou tão alto que até Occino deveria ter escutado. Mas isso me despertou, e a Tie também.
Ele pegou seu punhal e o cravou rapidamente no pescoço de um dos dois homens que atacava a bruxinha, que caiu morto. O outro eu tive o prazer de cuidar: Esperei que May o paralisasse com outro daqueles seus chutes certeiros e então uni a força das duas facas negras e decepei após algum tempo, enquanto ele gemia, sua cabeça.
Ambas as figuras desapareceram em fumaça negra após pouco tempo.
— Precisamos chegar a Inna agora! — Soltou Tie, parecendo um pouco tonto. Estava óbvio que havia ocorrido outra comunicação. — Ela e Micka se prenderam na loja de conveniência do posto da esquina da escola. Do lado de fora, segundo ela, alguém com uma serra elétrica.
May me encarou, pasma, e então voltou seu olhar para Tie. Agora, lágrimas escorriam pelo rosto gelado da garota.
—Paul... Precisamos ir! — Voltou a dizer, seriamente, o garoto. Seu rosto havia recebido uma forçada pincelada de preocupação extrema.
Assenti, embora soubesse dentro de mim que não teríamos tempo suficiente para chegar ao local.

(Continua...)

Lua escura - Parte 2

Abaixei o capuz para sentir a brisa que corria ao meu redor. A rua não estava movimentada, mas também não literalmente vazia. Um casal passeava alegremente pela calçada a minha esquerda, se beijando vez ou outra ou apenas sorrindo. Ouvi suas risadinhas, seus sussurros, seus passos. Era realmente assustador presenciar algo tão normal depois das últimas experiências.
Eram sorrisos sinceros aqueles. Sorrisos tão puros, capazes de domesticar até o maior assassino de todos os tempos, o que me causou um arrepio demorado.
Qualquer outra pessoa correria ou desmaiaria no momento em que o lindo casal desapareceu feito fumaça e ressurgiu, sacudindo as folhas caídas ao redor, a três metros de distância de onde se encontravam. Qualquer outra pessoa que não tenha os ensinamentos de Paul. Qualquer outra pessoa que não tenha uma aura-protetora-animal a seguindo por todo o canto.
Mas eu não era qualquer outra pessoa... E hoje não era um dia qualquer...

————————— Tie:

Observei enquanto todas as outras pessoas corriam alegres, tentando conseguir arrumar suas casas para esta noite. É incrível o modo como todos adotam o espírito deste feriado macabro, e eu não me excluo desse “todos”. É impossível não amar o Halloween.
Passei pelo pequeno e largo portão de madeira de minha casa, ignorando o gramado verde e as poucas flores que se alimentavam da luz. A porta já se encontrava aberta. Provavelmente Paul deve ter chegado de sua busca por Marianne assim que percebeu que ela não voltaria, e agora estaria entediado zapeando pelos canais de TV ou visitando o blog “Elementares” pelo meu laptop.
Joguei minha mochila em um dos bancos da cozinha e matei minha sede com um copo de água bem gelada. Gastei pouco mais de cinco segundos no cômodo até avistar Paul descendo do sótão com uma caixa enorme feita de papelão e alguns outros tipos de papel.
—O que é isso? — Perguntei, me aproximando antes de perceber que estava lacrada.
—Coisas indispensáveis para o dia das bruxas... — Respondeu, deixando a caixa em cima do balcão. — Hoje não é um dia comum, Tie. O Halloween é o dia dos espíritos.
—E daí?
—O único dia do ano em que os mortos se materializam em um corpo real e podem andar livremente por aí. — Respondeu, pegando um facão na primeira gaveta do armário para romper o lacre. — Somos procurados em ambos os mundos agora, não podemos deixar que eles se aproximem de nós. Sabe, estando “vivos”, eles tem mais facilidade em nos matar. E, acredite, os mortos ainda querem o sangue de May.
—Materializam? — Repeti, assustado. Observei-o, enfim, abrir a tal caixa e retirar de lá objetos conhecidos e alguns outros que eu não sabia exatamente explicar o que eram. — Isso quer dizer que todas as coisas que nos atacaram nos últimos dias retornarão?
—Pior que isso: — Disse, assustando-me mais ainda. — Isso quer dizer que muitos deles virão especificadamente atrás de seus corpos vazios.
—Vazios?
—estarão vazios assim que eles matarem vocês... — Me explicou, jogando-me uma abóbora roxa com uma vela inteira dentro, que eu quase deixo se espatifar no chão. — A menos que estejamos preparados.
—E o que exatamente essas... Éh... Abóboras tingidas farão para impedir?
—Nada... — Disse, sorrindo como deboche. — Mas essa casa precisa dar um susto em, pelo menos, uma criança...
Sorri por dois segundos. Pela primeira vez, Paul parecia entusiasmado com alguma coisa, e eu não seria um bom amigo se estragasse isso. Era estranho chamá-lo de amigo depois de todas as experiências que ele nos fez passar. Mas, afinal de contas, ele nos salvou. Vê-lo como um amigo era o mínimo que todos nós poderíamos fazer.
—Bem, May costuma ter coisas sobrando no Halloween, vou checar se ela pode ceder algo... — Disse, pegando uma das maçãs da fruteira de cima do balcão e dando alguns passos na direção da saída.
—Veja se ela não pode emprestar alguns esqueletos. — Sugeriu, subindo no balcão para pendurar teias falsas no teto.
Sem responder, passei pelo largo portão branco e caminhei até a rua vizinha, onde moravam May e, até pouco, Heath. As calçadas também estavam sendo decoradas este ano, com túmulos falsos e zumbis de cera, o que me desconfortou seriamente. Assim que passei pela última horda de mortos-vivos reparei que a rua mais parecia um cemitério, e que as pessoas, estranhamente, estavam felizes com isso.
Antes mesmo de me dar conta, estava a apenas alguns passos de distância da casa de May, e agora eu avistava mais alguns zumbis de ceras e muitas múmias de papel higiênico. O céu ameaçava chuva e, curiosamente, esta rua estava completamente vazia.
Mesmo evitando pensar muito, não pude deixar de sentir a presença de minha coruja em algum lugar próximo. Claro que ela não me obedeceu quando eu a mandei me esperar em casa com Paul. Apesar de aparentar ser apenas uma ave, ela era uma aura bem insistente.
Assim que o assunto me fugiu a cabeça, avistei o animal sair voando apressado da casa de minha amiga. Logo depois, uma espécie de raposa saltou para fora do terreno, se transformando em uma aura de cor roxa e seguindo minha ave.
—May? — Corri os últimos dez passos até a casa da jovem, e me assustei ao ver outra garota sendo envolvida por uma espécie de fumaça de mesma cor que a verdadeira forma da raposa. — May? O que é isso?
—Tie, tire Thor daqui! — Me gritou, sem olhar diretamente para mim.
Sem pensar, assenti. Corri até a metade do gramado e agarrei o cachorro, que saltou de meus braços e atravessou a rua correndo atrás dos outros dois animais. A velocidade daquele cão era incrível, tecnicamente impossível.
—May! — Gritei assim que a outra garota fez chamas crescerem ao meu redor.
—Deixe-o! — Ordenou com um grito enquanto a chama se extinguia aos poucos. — Não meta meus amigos em assuntos familiares, sua vadia!
—Dê-me o maldito diário agora, ou este jovem pode ter uma longa falta de ar!
Tive um rápido arrepio, seguido de um intenso frio na barriga. Se eu entendi bem, essa bruxa acabara de me incluir em uma “guerra” de família ameaçando provocar a minha morte. Minha cabeça foi capaz de raciocinar pelo menos isso, e também que o que eu viria a fazer a seguir seria muito perigoso sem minha coruja por perto. Mesmo assim, eu o fiz.
Antes mesmo de May responder a ameaça de sua colega, corri até ela e agarrei o diário de couro preto antes de puxar sua mão e sair correndo pela calçada. Ouvi um grito de fúria desumano atrás de nós, mas não desacelerei o passo ou ousei olhar para trás, continuei correndo com May e o diário Crommwell.
—Tie, o que está fazendo? — Perguntou, ainda correndo.
Ignorei a pergunta e entrei na rua seguinte sem prestar muito atenção nos vizinhos que nos encaravam como se fossemos loucos. Bem, provavelmente somos loucos. Passamos por mais algumas casas grandes que, por sinal, estavam decoradas perfeitamente, e entramos em minha casa, chamando atenção de Paul, que enchia uma grande panela de barro com água e gelo seco. Mas, assim que viu nossas caras e o jeito como eu segurava o diário, sua expressão mudou completamente.
—O que... O que houve? — Perguntou após abandonar a panela e se aproximar de nós dois.
—Amy Crommwell! — Respondeu May, ofegante. — Ela veio buscar o diário... E agora quer matar a mim e a Tie.
—fiquem aqui dentro até escurecer, entendido?
—Por que até o escurecer?
—Há muito tempo uma maldição foi feita... — Começou Paul. — Uma maldição que bloqueava o poder de toda e qualquer bruxa temporariamente. Na noite de Halloween, ninguém tem poderes. Bruxas, encarnados, absolutamente ninguém!
—Não falta muito para que a lua chegue... — Lembrei. — Podemos aguardar aqui um pouco, antes que tudo piore. Mas... E os outros? E minha coruja? Micka não sabe que...
—Não se preocupem. Na verdade, só nos resta esperar no fim das contas...
Os pelos dos meus braços se arrepiaram, e notei que May sentia exatamente o mesmo quando vi sua expressão. Entrelinhas, Paul não estava necessariamente falando sobre a maldição do Halloween. Não, ele estava falando sobre outra maldição. A guerra em que a descendente Crommwell estaria destinada a largar sua vida, literalmente. Pela primeira vez, eu realmente percebi que Paul não queria a morte de May. Ele a queria aqui, conosco.
A pergunta agora era: seria possível que um jovem encarnado teimoso mudasse tão rápido de opinião em relação a adolescentes que tentou matar várias vezes? Ou será que ainda existe um plano por trás de tudo isso? Afinal, onde está Marianne neste exato momento? E Celly? Onde se encaixa o desaparecimento dela?
Quebrei minha linha de raciocínio assim que comecei a imaginar coisas absurdas e assustadoras. O pior foi pensar que a maioria das minhas hipóteses poderia se tornar realidade algum dia. Tentei, por um segundo, esquecer o assunto.
Paul continuou decorando a casa conforme a lua subia ao céu, enquanto eu observava May escrevendo alguma coisa no diário de sua avó. Sentei-me ao lado dela e observei o que ela registrava:
“31 de Outubro – O nascer da nova geração.
Afinal, isso não pode terminar assim. Essa guerra, tudo está errado! Precisamos arrumar um jeito de impedir isto, precisamos impedir a minha e outras centenas de mortes que isto provocará.
Não fosse o bastante o fato de que querem me matar, agora me aparece uma suposta parenta distante, também bruxa (e muito mais evoluída que eu), que quer por que quer o diário Crommwell, e chegou a quase matar Thor por ele.
Essa não... Quase me esqueci de Thor! Ele correu atrás da aura de Amy (Que por sinal, é um animal extinto) assim que a raposa começou a seguir Owllie pela noite escura de Halloween. Onde estarão eles agora?”.
A moça parou de digitar assim que Paul nos chamou a atenção, jogando para nós dois punhais, um prateado e com a figura de um lobo no centro, e outro de lâmina dourada e com o desenho de uma lua minguante gravada no meio. Mesmo sentindo um pouco de ânsia ao ver a lua, observei enquanto May a segurava e a prendia em seu cinto negro depois de se levantar.
— O que quer que façamos com isso? — Perguntei, depois de pegar a lâmina prateada largada ao meu lado.
—Se defendam! — Respondeu, prendendo um par de facas completamente negras no cinto, assim como May fez. Vendo isto, e tomando nota que parecia ser um ritual para os outros dois na sala, ele fez o mesmo. — A lua está no alto... A noite dos mortos começou!

Se Paul não tivesse nos dito como era perigoso para nós ficar parados em um lugar só em uma noite como esta, May e eu nunca o teríamos seguido por seu passeio pela vizinhança. Nossas armas estavam preparadas para qualquer coisa, apesar de que rezávamos para que não precisássemos mesmo usá-las.
As ruas estavam aterrorizantes: Calçadas repletas de múmias, lobisomens, zumbis, aranhas gigantes, túmulos, sangue falso, uma espécie de gosma verde-fluorescente, e muitas outras coisas... Inclusive pequenas figuras fantasiadas, as crianças. Muitas casas mal-assombradas para uma noite só. Apenas os três pareciam realmente ter medo do que poderia ter dentro daquelas moradias. Aliás, éramos os únicos “fantasiados” de caçadores de bruxas, com nossas “facas” benzidas e as vestes pretas. Apesar das lâminas, ninguém pareceu realmente ligar.
E então, como um vulto, algo agarrou um dos braços de May mais rápido do que uma cobra ataca sua presa. Paul e eu nos viramos no mesmo instante, erguendo os punhais. Mas May foi mais rápida: Mesmo tendo sido impedida de chegar à sua lâmina, a garota deu um chute em um lugar não muito bom assim que se certificou ser um homem. Esse que, agora, gemia de dor e angústia. Permaneceu assim por mais ou menos uns dois minutos completos, e apenas quando se ergueu mais uma vez o trio pode ver de quem se tratava.
—Heath? — Dissemos eu e May, em uníssono, enquanto o jovem abria um sorriso maldoso.
—Vim para ter meu acerto de contas... — Sussurrou, com uma voz um pouco rouca, antes de mostrar assustadores dentes que lembravam uma arcada dentária de um tubarão branco e se jogar em cima de Paul.

(Continua...)
 

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