Episódio 6

De um momento para outro, um dos seres misteriosos segurava uma espécie de canivete, de lâmina preta, com bastante força. Inna se desesperou, havia perdido completamente suas esperanças.
Inna gemeu, e então gritou.
O canivete estava instalado em alguma parte de sua perna esquerda, ela poderia até tentar identificar o local, se não tivesse levado outra facada em sua barriga.
Não tem sangue, pensou. Mas... Deveria ter sangue!
-Parem! – Uma voz triunfou e ecoou por toda a sala... Ou, seja lá o que fosse aquele lugar. – Eu me encarrego disso!
O canivete havia desaparecido, mas não a dor. Os homens de capa azul-escura voltaram a carregar Tie, passando por uma enorme abertura na parede (a única saída), e desaparecendo em um corredor escuro e medieval, onde tochas presas às pedras nas paredes era a única iluminação.
-Parece desconfortável estar presa desse jeito... – Celly já estava desacorrentando Inna. – Pronto! – A garota esfaqueada finalmente encontrou as tábuas podres que formavam o chão. – Escute... Não vou poder ajudá-los sempre... Precisam tomar cuidados básicos e essenciais a partir de agora!
-Me desculpe... – Inna pulou para um abraço. Tentou chorar, despejar tudo ali mesmo, mas suas lágrimas não saíram.
-Acalme-se, Minha pequena pomba branca... – Os braços de Celly aqueciam Inna, fazendo-a sentir confortável outra vez. Mas o abraço logo se desfez. – Você e Tie não deviam estar aqui...
-Celly, aqueles homens...
-São espíritos vigias. Seu dever proteger este plano de invasores de outras camadas espirituais. Por isso eles te acorrentaram... Estavam se aprontando para enviar os dois de volta... Mas você despertou antes, e gritou... E eles odeiam barulhos altos!
-Celly... Levaram Tie...
-Para o portal! Vão mandá-lo de volta! – Celly e Inna agora estavam de mãos dadas. – Vamos, não vão te machucar enquanto estiver comigo... Eu te levo!
-Espere, quando voltar, estarei segura? Eu me lembro de ter desmaiado... Aquela mulher...
-Aquela mulher se chama Marianne!
-Você a conhece? – Inna não estava tão surpresa, afinal, se tratava de Celly: A protetora alegre e misteriosa recém-chegada em sua vida.
-Sim... Infelizmente da maneira errada! Marianne não é apenas uma encarnada, Pomba branca, ela foi expulsa da casa de Deus... Tome cuidado com ela!
Algo se arrasta no andar de cima. O som lembrava correntes, grossas e pesadas, sendo arrastadas lentamente, seguido por altos e sofridos gemidos que eram substituídos por inúmeros gritos, masculinos e femininos.
-Você deve ir! – Celly agarrou o braço esquerdo de Inna e começou a correr, arrastando a menina, pelo mesmo corredor em que os dois vigias estiveram com Tie há pouco tempo. –Use Paula... Ela ainda é a mesma! Vai ajudar vocês dois!
-Ela é minha! – Uma voz ecoou por trás das duas. A mulher estendeu uma das mãos, e uma espécie de barreira, com um roxo transparente, se ergueu, impedindo a passagem de Inna e Celly. – Você não se cansa de se intrometer nos meus planos, não é?
Elas se viraram, e seus olhos foram de encontro aos de Marianne, que era seguida por seu gato preto.
* * *
Jennifer despertava aos poucos, sentindo uma forte e insistente dor de cabeça e inalando um terrível odor que mais parecia uma mistura de banheiro público e algum animal morto. Analisando um pouco mais um local, ela percebeu estar em uma caverna.
-Olhe quem resolveu acordar... – Heath segurava uma vela, apagada, partida ao meio. – Teve uma boa noite de sono?
A mulher estava acorrentada a uma desconfortável pedra que lhe lembrava uma cama de solteiro. Ao seu lado, jogados no chão, estavam os corpos de dois jovens familiares, presos por correntes a uma pedra pontiaguda que se destacava logo atrás deles. Tie parecia estar desperto, mas Inna se encontrava desacordada.
-Não se preocupe... Ainda não vou fazer nada com eles... – Heath pôs a vela em cima de uma compacta escrivaninha.
-Eu quero explicações e eu quero agora! – A voz que se libertava de sua garganta demonstrava um espírito autoritário e raivoso. – Me solte!
-Querida senhorita Jennifer... – Heath largou um pequeno sorriso. – Você não pode fazer nada... Se eu fosse você me trataria com um pouco mais de respeito!
-Quem você pensa que é para...
-Jennifer, por favor... – Tie parecia cansado, seu rosto se encontrava com inúmeros arranhões, mas apenas o de seu braço lhe chamou a atenção. Um profundo, inchado, e vermelho arranhão, mais parecido com um ferimento causado por uma águia ou algo do gênero. – Não o contrarie... Pelo menos não agora...
-Ouça o jovem, Senhorita! – Heath posicionou seu rosto a um centímetro de distância do de Jennifer, mas logo recuou. – Caso contrário, ele pagará pelos seus pecados.
-Como se atreve? Conheço Tie desde que ele era apenas um feto, nunca deixaria você fazer nada com ele!
-JENNIFER!- Tie gritou. – Por favor, pare! Ele não é o que você pensa... Ele não é humano, pode nos matar a qualquer instante!
-Pequeno feto Tie! – Heath se virou para ele, com uma das mãos tapando a boca, e uma expressão de susto em seu rosto. – Quer mesmo envolve-la nisto? Não acha que, se ela souber demais, pode acabar morrendo?
-Do que vocês estão falando? – A raiva crescia no peito da moça, e se espalhava por todo o seu corpo. – Eu exijo saber, agora!
-Se você não fugir, irão te matar! – Tie berrou, recebendo um forte chute no estômago logo em seguida.
-Cale-se!
-Tie! – Jennifer gritou, remexendo todo o seu corpo, em uma tentativa de fuga. – Deixe-os em paz!
-Nossa, agora vejo de onde Micka puxou a liderança... Pena que isso não funciona com a minha pessoa...
-Fique longe dela!- Jennifer se debatia cada vez mais, enquanto o desespero e o ódio a tomavam. Ela queria se soltar. Queria partir Heath em vários pedaços.
-Não se preocupe... Eu não vou fazer nada com ela...
-E não vai mesmo! – Uma voz liderou da entrada da caverna. Paula agora vestia um largo vestido rosa, e algumas pulseiras prateadas brilhantes em seu braço direito. Seu cabelo estava totalmente ondulado, estava obvio que a menina se preocupava mais com seu bem-estar do que com essa história toda. – Heath... No que eles te transformaram? – A jovem balançava a cabeça, em reprovação. – Você não era assim... Foi corroído pelo ódio em tão pouco tempo...
-Amor... – Ele riu. – Apenas faço o que me mandam fazer! – Ele chuta Tie mais uma vez, com força, desta vez em seu rosto. – Gosto de fazer coisas bem feitas.
-Heath... Não os reconhece mais, não é? – Paula se aproximou, e parou bem na frente dele. – Você não se lembra mais deles como seus amigos... Não lembra mais de sua vida... De sua vida real...
-Eu não preciso de vida! – Heath gritou, forçando a voz a ficar mais grossa. – Eu não preciso deles, não preciso de nada! – Ele voltou a segurar a vela partida, amassando-a, enquanto fechava a mão esquerda. – Meus últimos momentos de vida foram pura tortura... Graças a esses desgraçados!
-Não diga isso, Heath! – Paula retribuiu o tom de voz. – Não percebe? Eles são vítimas tão indefesas quanto nós! Pior, eles são nossos amigos Heath... Devíamos estar do lado deles!
-Marianne...
-Marianne vai pro inferno! – Paula agora não controlava mais o volume de seu tom de voz. – Marianne está usando você, ela está manipulando cada movimento seu!
-Marianne irá matar quem for contra seus planos! Sinto muito, Paula, se tentar ajudá-los eu terei que detê-la.
-Então comece... – Micka surgiu bem atrás da jovem, sendo guiada por May.
-Filha! – Jennifer se manifestou. – O que faz aqui? Tome cuidado com esse psicopata!
-Não se preocupe mamãe! – Mickaella deixou escapar um sorriso malicioso. –Eu sei muito bem do que ele não é capaz!
-O que é isso? – Heath fechara os punhos, seus olhos continuavam fixos em Paula, e seu rosto não demonstrava nada além de puro ódio. – Não consegue lutar sozinha, vadia?
-Lutar? – Paula tentou se aproximar, mas o garoto recuou. – Ninguém mencionou luta alguma, Heath... Você é quem está viciado por poder. Aliás, que tipo de palavreado é este? Você nunca ousou me chamar sequer de... Sei lá... “Banana”! Entende o que eu estou tentando dizer? Você não é mais o mesmo...
Heath puxa uma pequena faca da escrivaninha velha e a atira em Paula, que esquiva rapidamente. A faca se choca contra o chão.
-Heath! – A moça de rosa estava realmente surpresa. – Você... Tentou me matar... De novo!
-Você não é mais confiável, Vadia... – Ele se aproximou de Paula novamente. – Marianne vai saber do ocorrido. Ela irá te matar de forma tão lenta e dolorosa que eu mesmo terei pena por você ter nascido.
-Pode chamá-la... Ao contrário de você, eu não tenho medo dela! – Paula recuou dois passos. – Agora, eu lhe peço licença, vou levar meus amigos para um lugar seguro. O mais longe possível de todos vocês!
Enquanto o casal discutia, May e Micka se comunicavam pelo olhar. As duas pensaram na mesma coisa, ao mesmo tempo, e estavam prontas para agir. Algum tipo de código foi lançado no ar pelas suas mentes, algo que apenas as duas pareciam ver e entender.
Seja lá o que fosse, deveriam fazer rápido, pelo menos enquanto Paula distraia o encarnado. Heath virara toda a sua atenção para a briga, Este era o momento certo!
May recuou alguns passos, e agachou, procurando por algo perdido entre a pele rochosa que cobria todo o solo da caverna. Bingo! Ela pegou o objeto pontiagudo:
-Inna... Tie... – A garota seria uma bela atriz, se resolvesse se dedicar a isto. – Me dêem um abraço! – May passou tão rápido que Heath parecia nem ter percebido seu último movimento. No último instante a jovem dá meia volta, parando exatamente atrás de Heath.
-Não vai levar ninguém, Paula... – A discussão parecia interminável. – Eu quero todos preparados quando Paul voltar!
-Zumbis não têm vontade própria! – May gritou. Era tarde para Heath se virar. A faca havia atravessado seu pescoço. – Sinto muito... – As lágrimas da moça e o sangue de Heath dividiam espaço no solo. Ela retirou a faca e a jogou perto da cama-pedra.
O corpo de Heath cedeu, agora estava completamente estirado no chão, em meio ao líquido vermelho.
-Nos perdoe Heath... – Micka se aproximou de Paula, olhando para o corpo largado em meio às rochas. – Você não nos deu alternativa...
-Fizeram bem... – Paula soltou as lágrimas, mas prendeu a parte gemida do choro. Seu rosto continuou com uma expressão séria. – Este não era mais o MEU Heath... Este era o Heath das sombras. – A moça enxugou as lágrimas com as mãos. – Vamos logo, Paul deve chegar daqui a pouco tempo. Esperem lá fora, a parte boa da transformação é a força... Vou arrebentar as correntes.
-Está mesmo bem, Paula? – May a encarou. – Pode dizer... Sabemos o quanto gostava dele...
-Não me pergunte isto... Pelo menos não agora... – Paula se aproximou de Jennifer, e com apenas um pequeno puxão na corrente com o cadeado, todas as outras se soltaram.
A mulher se levantou, cambaleando, e foi de encontro à filha. As duas se abraçaram forte:
-Ainda bem, filha... – Jennifer tremeu, o frio e a ansiedade a tomaram em uma mesma fração de segundo. Mas ela dispensou o choro, ele ficaria preso em seus olhos até o fim... Ou, pelo menos, até chegar em sua casa e ligar para a polícia local.
-Terminei... – Paula ajudava Tie a se levantar, e então ergueu o corpo de Inna, carregando-a em seu colo assim que percebeu que a jovem não despertaria tão facilmente. – Por que não me esperaram lá fora? Bem... Vamos indo, não temos muito tempo até que alguém volte para este esgoto!
-Mas e o corpo? – Jennifer parecia desesperada. Ela foi pega de surpresa pelos últimos acontecimentos. Seu coração quase que explodia de tão rápido que batia, e suas mãos perderam a força. Embora se sentisse como um simples cubo de gelo, o suor dominava todo o seu corpo. – Vão simplesmente deixa-lo aí?
-Marianne que se vire com ele! – Paula caminhou até a entrada da caverna, passando a frente de todos, ainda carregando Inna. – Vamos logo... May terá muito trabalho!
-Eu? – A jovem bruxa cruzou os braços, expressando desentendimento. – Porque terei muito trabalho?
-Precisa perguntar? – Paula não se virou para responder, continuou a caminhar assim que percebeu estar sendo seguida pelos outros. – Não vai me deixar ficar assim, não é? Deve haver alguma forma de me fazer voltar a ser humana.
-Paula, eu não sei se você percebeu, mas... Eu acabei de descobrir que minha família é anormal! Ainda não sei como fazer magia, querida.
-Você aprendeu a andar e usar o pinico, Senhorita Crommwell, pode muito bem aprender magia! – A moça de rosa não parecia estar de brincadeira, ainda mais depois de tudo o que houve na última hora.
Os jovens finalmente chegam ao asfalto, silencioso como sempre, vazio. Algo começa a se movimentar em meio à escuridão.
Assustadoramente, um enorme corvo negro como a noite sobrevoa todo o grupo, e pousa em cima de um luxuoso carro prateado.
* * *
-Essa guerra é nossa, Marianne... – Celly havia feito algum movimento estranho com a mão direita, jamais desviando o olhar da mulher de vestido colado vermelho. Ela conseguira quebrar a barreira. – Não a meta nisso... Eu imploro! Eles não têm nada haver com essa batalha.
-Eles têm mais haver com isso do que você pensa! –Marianne se aproximou. – Se não fosse pela mãe daquela bruxa maldita eu ainda teria minha força branca!
-Cloe não teve culpa da sua expulsão, Você a traiu... E traiu ao Senhor! – Celly correu para frente de Inna, recuando para o fim do corredor à medida que Marianne se aproximava. Havia uma abertura na parede, resultando em uma enorme sala oval, com vários espelhos do tamanho de um adulto mediano. – Você foi a maior culpada pela perda de sua própria força!
- Eu não tive culpa de absolutamente nada! – Marianne reuniu toda a sua força, e então se jogou em cima de Celly.
Antes de ser atingida, a moça puxou Inna pelo pulso e a arremessou contra um dos grandes espelhos. Após o choque a jovem se encolheu, ainda no ar, na tentativa de se proteger dos pontiagudos cacos de vidro que a estariam esperando. Suas mãos foram de encontro ao seu rosto, e ela se curvou, para livrar seus órgãos vitais da tragédia.
Mas algo aconteceu!
O espelho não havia se partido em vários pedacinhos, como Inna havia imaginado. Ao invés disso a jovem havia atravessado ele, de alguma forma. Ela conseguia ver a briga se enfatizando entre Celly e Marianne por um pequeno quadrado, por onde ela havia passado, que se afastava cada vez mais da menina. Uma luz rosada rondava todo o seu corpo, e outra, de cor branco-transparente, rondando toda a parte interna do espelho.
Em um instante, tudo escureceu.
* * *
-Vamos embora! – Tie murmurou com a garganta seca. – É o pássaro que nos atacou... Ele é uma sombra.
-A sombra de Paul... – Paula se adiantou. – Vá embora, Sturk, Seu mestre não está aqui. – A moça afastou o pássaro, que voou para longe do grupo.
-Ai...
-Gente... –Paula pôs Inna em pé. – Ela está despertando!
-Preciso de uma aspirina... –A jovem recém-desperta passou a mão esquerda por sua testa encharcada de suor, após detectar inúmeras picadas de mosquito em seus braços e pernas. Seu cabelo estava oleoso, e seu brilho labial havia ido para o espaço.
-Aí, galera...- Todos voltaram sua atenção para Tie. Exceto Inna, que recostou sua cabeça no ombro de Paula. – Eu não queria lembrar dele agora,mas... Com quem ficou Riley?
May e Micka se entreolharam, assustadas.
-Bem, se o deixaram sozinho é melhor corrermos. – Paula ajudou Inna a voltar a ficar de pé, após um tombo feio. – Paul ou Marianne com toda certeza já está indo para lá.
O corvo sobrevoou o grupo novamente.
-Vamos logo! – May ordenou.
As duas começaram a correr. Paula e Jennifer ainda ajudavam Inna e Tie a se movimentarem, com todos aqueles ferimentos.
* * *
 

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