Lua escura - Parte 2

Abaixei o capuz para sentir a brisa que corria ao meu redor. A rua não estava movimentada, mas também não literalmente vazia. Um casal passeava alegremente pela calçada a minha esquerda, se beijando vez ou outra ou apenas sorrindo. Ouvi suas risadinhas, seus sussurros, seus passos. Era realmente assustador presenciar algo tão normal depois das últimas experiências.
Eram sorrisos sinceros aqueles. Sorrisos tão puros, capazes de domesticar até o maior assassino de todos os tempos, o que me causou um arrepio demorado.
Qualquer outra pessoa correria ou desmaiaria no momento em que o lindo casal desapareceu feito fumaça e ressurgiu, sacudindo as folhas caídas ao redor, a três metros de distância de onde se encontravam. Qualquer outra pessoa que não tenha os ensinamentos de Paul. Qualquer outra pessoa que não tenha uma aura-protetora-animal a seguindo por todo o canto.
Mas eu não era qualquer outra pessoa... E hoje não era um dia qualquer...

————————— Tie:

Observei enquanto todas as outras pessoas corriam alegres, tentando conseguir arrumar suas casas para esta noite. É incrível o modo como todos adotam o espírito deste feriado macabro, e eu não me excluo desse “todos”. É impossível não amar o Halloween.
Passei pelo pequeno e largo portão de madeira de minha casa, ignorando o gramado verde e as poucas flores que se alimentavam da luz. A porta já se encontrava aberta. Provavelmente Paul deve ter chegado de sua busca por Marianne assim que percebeu que ela não voltaria, e agora estaria entediado zapeando pelos canais de TV ou visitando o blog “Elementares” pelo meu laptop.
Joguei minha mochila em um dos bancos da cozinha e matei minha sede com um copo de água bem gelada. Gastei pouco mais de cinco segundos no cômodo até avistar Paul descendo do sótão com uma caixa enorme feita de papelão e alguns outros tipos de papel.
—O que é isso? — Perguntei, me aproximando antes de perceber que estava lacrada.
—Coisas indispensáveis para o dia das bruxas... — Respondeu, deixando a caixa em cima do balcão. — Hoje não é um dia comum, Tie. O Halloween é o dia dos espíritos.
—E daí?
—O único dia do ano em que os mortos se materializam em um corpo real e podem andar livremente por aí. — Respondeu, pegando um facão na primeira gaveta do armário para romper o lacre. — Somos procurados em ambos os mundos agora, não podemos deixar que eles se aproximem de nós. Sabe, estando “vivos”, eles tem mais facilidade em nos matar. E, acredite, os mortos ainda querem o sangue de May.
—Materializam? — Repeti, assustado. Observei-o, enfim, abrir a tal caixa e retirar de lá objetos conhecidos e alguns outros que eu não sabia exatamente explicar o que eram. — Isso quer dizer que todas as coisas que nos atacaram nos últimos dias retornarão?
—Pior que isso: — Disse, assustando-me mais ainda. — Isso quer dizer que muitos deles virão especificadamente atrás de seus corpos vazios.
—Vazios?
—estarão vazios assim que eles matarem vocês... — Me explicou, jogando-me uma abóbora roxa com uma vela inteira dentro, que eu quase deixo se espatifar no chão. — A menos que estejamos preparados.
—E o que exatamente essas... Éh... Abóboras tingidas farão para impedir?
—Nada... — Disse, sorrindo como deboche. — Mas essa casa precisa dar um susto em, pelo menos, uma criança...
Sorri por dois segundos. Pela primeira vez, Paul parecia entusiasmado com alguma coisa, e eu não seria um bom amigo se estragasse isso. Era estranho chamá-lo de amigo depois de todas as experiências que ele nos fez passar. Mas, afinal de contas, ele nos salvou. Vê-lo como um amigo era o mínimo que todos nós poderíamos fazer.
—Bem, May costuma ter coisas sobrando no Halloween, vou checar se ela pode ceder algo... — Disse, pegando uma das maçãs da fruteira de cima do balcão e dando alguns passos na direção da saída.
—Veja se ela não pode emprestar alguns esqueletos. — Sugeriu, subindo no balcão para pendurar teias falsas no teto.
Sem responder, passei pelo largo portão branco e caminhei até a rua vizinha, onde moravam May e, até pouco, Heath. As calçadas também estavam sendo decoradas este ano, com túmulos falsos e zumbis de cera, o que me desconfortou seriamente. Assim que passei pela última horda de mortos-vivos reparei que a rua mais parecia um cemitério, e que as pessoas, estranhamente, estavam felizes com isso.
Antes mesmo de me dar conta, estava a apenas alguns passos de distância da casa de May, e agora eu avistava mais alguns zumbis de ceras e muitas múmias de papel higiênico. O céu ameaçava chuva e, curiosamente, esta rua estava completamente vazia.
Mesmo evitando pensar muito, não pude deixar de sentir a presença de minha coruja em algum lugar próximo. Claro que ela não me obedeceu quando eu a mandei me esperar em casa com Paul. Apesar de aparentar ser apenas uma ave, ela era uma aura bem insistente.
Assim que o assunto me fugiu a cabeça, avistei o animal sair voando apressado da casa de minha amiga. Logo depois, uma espécie de raposa saltou para fora do terreno, se transformando em uma aura de cor roxa e seguindo minha ave.
—May? — Corri os últimos dez passos até a casa da jovem, e me assustei ao ver outra garota sendo envolvida por uma espécie de fumaça de mesma cor que a verdadeira forma da raposa. — May? O que é isso?
—Tie, tire Thor daqui! — Me gritou, sem olhar diretamente para mim.
Sem pensar, assenti. Corri até a metade do gramado e agarrei o cachorro, que saltou de meus braços e atravessou a rua correndo atrás dos outros dois animais. A velocidade daquele cão era incrível, tecnicamente impossível.
—May! — Gritei assim que a outra garota fez chamas crescerem ao meu redor.
—Deixe-o! — Ordenou com um grito enquanto a chama se extinguia aos poucos. — Não meta meus amigos em assuntos familiares, sua vadia!
—Dê-me o maldito diário agora, ou este jovem pode ter uma longa falta de ar!
Tive um rápido arrepio, seguido de um intenso frio na barriga. Se eu entendi bem, essa bruxa acabara de me incluir em uma “guerra” de família ameaçando provocar a minha morte. Minha cabeça foi capaz de raciocinar pelo menos isso, e também que o que eu viria a fazer a seguir seria muito perigoso sem minha coruja por perto. Mesmo assim, eu o fiz.
Antes mesmo de May responder a ameaça de sua colega, corri até ela e agarrei o diário de couro preto antes de puxar sua mão e sair correndo pela calçada. Ouvi um grito de fúria desumano atrás de nós, mas não desacelerei o passo ou ousei olhar para trás, continuei correndo com May e o diário Crommwell.
—Tie, o que está fazendo? — Perguntou, ainda correndo.
Ignorei a pergunta e entrei na rua seguinte sem prestar muito atenção nos vizinhos que nos encaravam como se fossemos loucos. Bem, provavelmente somos loucos. Passamos por mais algumas casas grandes que, por sinal, estavam decoradas perfeitamente, e entramos em minha casa, chamando atenção de Paul, que enchia uma grande panela de barro com água e gelo seco. Mas, assim que viu nossas caras e o jeito como eu segurava o diário, sua expressão mudou completamente.
—O que... O que houve? — Perguntou após abandonar a panela e se aproximar de nós dois.
—Amy Crommwell! — Respondeu May, ofegante. — Ela veio buscar o diário... E agora quer matar a mim e a Tie.
—fiquem aqui dentro até escurecer, entendido?
—Por que até o escurecer?
—Há muito tempo uma maldição foi feita... — Começou Paul. — Uma maldição que bloqueava o poder de toda e qualquer bruxa temporariamente. Na noite de Halloween, ninguém tem poderes. Bruxas, encarnados, absolutamente ninguém!
—Não falta muito para que a lua chegue... — Lembrei. — Podemos aguardar aqui um pouco, antes que tudo piore. Mas... E os outros? E minha coruja? Micka não sabe que...
—Não se preocupem. Na verdade, só nos resta esperar no fim das contas...
Os pelos dos meus braços se arrepiaram, e notei que May sentia exatamente o mesmo quando vi sua expressão. Entrelinhas, Paul não estava necessariamente falando sobre a maldição do Halloween. Não, ele estava falando sobre outra maldição. A guerra em que a descendente Crommwell estaria destinada a largar sua vida, literalmente. Pela primeira vez, eu realmente percebi que Paul não queria a morte de May. Ele a queria aqui, conosco.
A pergunta agora era: seria possível que um jovem encarnado teimoso mudasse tão rápido de opinião em relação a adolescentes que tentou matar várias vezes? Ou será que ainda existe um plano por trás de tudo isso? Afinal, onde está Marianne neste exato momento? E Celly? Onde se encaixa o desaparecimento dela?
Quebrei minha linha de raciocínio assim que comecei a imaginar coisas absurdas e assustadoras. O pior foi pensar que a maioria das minhas hipóteses poderia se tornar realidade algum dia. Tentei, por um segundo, esquecer o assunto.
Paul continuou decorando a casa conforme a lua subia ao céu, enquanto eu observava May escrevendo alguma coisa no diário de sua avó. Sentei-me ao lado dela e observei o que ela registrava:
“31 de Outubro – O nascer da nova geração.
Afinal, isso não pode terminar assim. Essa guerra, tudo está errado! Precisamos arrumar um jeito de impedir isto, precisamos impedir a minha e outras centenas de mortes que isto provocará.
Não fosse o bastante o fato de que querem me matar, agora me aparece uma suposta parenta distante, também bruxa (e muito mais evoluída que eu), que quer por que quer o diário Crommwell, e chegou a quase matar Thor por ele.
Essa não... Quase me esqueci de Thor! Ele correu atrás da aura de Amy (Que por sinal, é um animal extinto) assim que a raposa começou a seguir Owllie pela noite escura de Halloween. Onde estarão eles agora?”.
A moça parou de digitar assim que Paul nos chamou a atenção, jogando para nós dois punhais, um prateado e com a figura de um lobo no centro, e outro de lâmina dourada e com o desenho de uma lua minguante gravada no meio. Mesmo sentindo um pouco de ânsia ao ver a lua, observei enquanto May a segurava e a prendia em seu cinto negro depois de se levantar.
— O que quer que façamos com isso? — Perguntei, depois de pegar a lâmina prateada largada ao meu lado.
—Se defendam! — Respondeu, prendendo um par de facas completamente negras no cinto, assim como May fez. Vendo isto, e tomando nota que parecia ser um ritual para os outros dois na sala, ele fez o mesmo. — A lua está no alto... A noite dos mortos começou!

Se Paul não tivesse nos dito como era perigoso para nós ficar parados em um lugar só em uma noite como esta, May e eu nunca o teríamos seguido por seu passeio pela vizinhança. Nossas armas estavam preparadas para qualquer coisa, apesar de que rezávamos para que não precisássemos mesmo usá-las.
As ruas estavam aterrorizantes: Calçadas repletas de múmias, lobisomens, zumbis, aranhas gigantes, túmulos, sangue falso, uma espécie de gosma verde-fluorescente, e muitas outras coisas... Inclusive pequenas figuras fantasiadas, as crianças. Muitas casas mal-assombradas para uma noite só. Apenas os três pareciam realmente ter medo do que poderia ter dentro daquelas moradias. Aliás, éramos os únicos “fantasiados” de caçadores de bruxas, com nossas “facas” benzidas e as vestes pretas. Apesar das lâminas, ninguém pareceu realmente ligar.
E então, como um vulto, algo agarrou um dos braços de May mais rápido do que uma cobra ataca sua presa. Paul e eu nos viramos no mesmo instante, erguendo os punhais. Mas May foi mais rápida: Mesmo tendo sido impedida de chegar à sua lâmina, a garota deu um chute em um lugar não muito bom assim que se certificou ser um homem. Esse que, agora, gemia de dor e angústia. Permaneceu assim por mais ou menos uns dois minutos completos, e apenas quando se ergueu mais uma vez o trio pode ver de quem se tratava.
—Heath? — Dissemos eu e May, em uníssono, enquanto o jovem abria um sorriso maldoso.
—Vim para ter meu acerto de contas... — Sussurrou, com uma voz um pouco rouca, antes de mostrar assustadores dentes que lembravam uma arcada dentária de um tubarão branco e se jogar em cima de Paul.

(Continua...)

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