Lua escura - Parte 5

Parte de meu cérebro estava inacessível. Na verdade, a palavra certa era inviolável. Após tanto sofrimento ao lado de bruxos, anjos, espíritos e demônios, decidi que seria melhor para minha própria mente que eu “esquecesse” de tudo e nunca mais tocasse no assunto, independente do que acontecesse.
Tudo estava indo como planejado, e minha sensação de normalidade durou pelos próximos trinta minutos, quando a lua subiu ao céu solitário da cidade. Pelo que parece, a guerra espiritual lançou seus tentáculos para lugares que até a própria May nunca pensaria em investigar. Quem diria que teríamos ajuda de nossa decente, pura, e ingênua professora de sociologia?

---- Mickaella:

— Marianne? — A voz de Paul ecoou na entrada deserta do posto de gasolina. — Por onde esteve? E... Quem é a sua amiguinha?
— Alguém que arrumei para me ajudar em minha missão, já que o meu fiel companheiro resolveu colaborar com o oponente...
Com um arrepio desconfortante, percebi que nós éramos os tais oponentes. Marianne, estranhamente, nos queria vivos. Não, ela queria May viva, para que a pudesse sacrificar durante a guerra final. Mas... O que éramos nós? Eu realmente não entendia o motivo pelo qual esta esnobe dama de alta classe não havia ainda acabado com nossa raça. E isso, sim, acabava comigo.
— Percebi que estava do lado errado...
— Sim, você é o típico romântico incorrigível que escolhe ajudar aos “amigos” do que receber a própria libertação espiritual... — Ao dizer a palavra amigos, ela realmente tentou reproduzir as aspas com os dedos.
— Pode-se dizer que sim, Marianne... — Paul balançou a cabeça, em negativa, com um sorriso sarcástico no rosto. — E faço isso porque eu tenho amigos! E, quando digo isso, não estou falando apenas de um medíocre gato preto que mal liga pra minha existência. Eu falo de humanos, que mesmo sabendo desde o início de meus propósitos, ainda assim dariam sua vida por mim.
— Fique com eles, Paul. Fique até o momento em que você for descartável e te substituírem como fizeram com aquele maldito Riley...
O nome me fez gemer de angústia. Por um momento, pensei como ele estaria reagindo a esta terrível noite, sozinho. Lembrei-me então que ninguém havia avisado a ele os perigos do Halloween. Meu pavor dobrou de tamanho. Mas a discussão entre os dois encarnados continuava à minha frente:
— Quer dizer como você, não é? — Paul ficava cada vez mais vermelho, talvez de raiva. Seus punhos estavam cerrados, e seus olhos tão fixos em Marianne quanto os de uma coruja. — Enquanto eu cumpria suas ordens, protegendo o grupo do demônio das sombras, você fugia sei lá pra onde com o seu lindo e domesticado mascote!
— Você sabe muito bem que este não é o problema, Paul... Se tentasse me encontrar, sabe que me encontraria. Mas preferiu essa gente imunda! Hã... Mas você sempre foi assim... Desde a nossa geração! Ficou ao lado de Cloe e Celly... Max morreu por sua culpa! De todos vocês!
— Max morreu pelo simples fato de não acreditar no mundo a sua volta! — Agora, o garoto loiro literalmente berrava, como se ele fosse um copo de vidro e estivesse sido cheio com sua última gota de água. — Caso não se lembre, Mary, foi você quem o entregou à serpente e o deixou ser devorado quando viu que ela estava se aproximando!
—CALEM-SE! — A voz feminina de Celly chamou a atenção de todos nós, que agora a encarávamos perplexos.
Com um longo e solto vestido branco, que cobria suas pernas e impedia que víssemos seus pés, que parecia ser feito do tecido mais leve e confortável que já vi, a anja se aproximou do grupo. Seus cabelos estavam diferentes: agora eram castanhos e ondulados, e deveriam chegar a sua cintura. Seus olhos refletiam um lindo verde concentrado, que agora encarava sério as duas figuras que discutiam.
— A geração de vocês já passou! E, sinceramente, ninguém aqui liga muito para isso. — estranhamente, Celly ainda tinha poder. Eu o sentia, e era reconfortante. Quase me fazia querer sorrir. — Agora me escute, Marianne, não ouse interferir no destino! Se fizer algo contra May ou seus amigos, lembre-se que papai está olhando você, e eu duvido que ele permita que você entre em seu reino!
— E você, quem é? Uma maldita anja que eu mesma terei o prazer de mandar para o inferno! — Mesmo sabendo que nada poderia fazer, fiquei realmente nervosa quando Marianne, com suas unhas à mostra, avançou na direção de Celly, que sorria calorosamente para ela.
Quando pensei que a anja faria alguma coisa, Inna reagiu primeiro, o que me assustou. Minha amiga gótica já havia matado, a bem dizer, duas “pessoas” esta noite, e eu tinha que ela se arrependeria amargamente no dia seguinte.
—DEIXE CELLY EM PAZ! — Gritou, saltando em cima da mulher de vestido colado. As duas rolaram pelo asfalto, até pararem do outro lado, onde Inna literalmente socava a face de sua oponente inúmera vezes. Pela primeira vez em toda a minha vida, eu vi sangue saindo do corpo fraco de Marianne.
A mulher, enquanto apanhava, esticou o braço para algo que estava praticamente ao lado dela. Quando percebi do que se tratava, Paul já havia entrado no combate: Enquanto Inna paralisava a dama, o rapaz puxava o seu braço, retirando uma larga pedra pontuda de sua mão. Senti outro arrepio. Se Marianne tivesse acertado minha amiga com aquilo... Bom, então ela ficaria definitivamente ao lado de sua protetora anja, o que seria triste para todos nós.
Com uma imensa frieza, Inna se levantou e chutou com força o pescoço da dama. Ouviu-se um doloroso crack, e o corpo caído no chão parou de reagir. Após alguns segundos, a mesma mulher se desintegrou em uma grossa fumaça negra.
— Materializado? — Perguntou Paul, que parecia tão surpreso quanto eu.
— Merda. Tanto esforço para nada! — reclamou Inna, cruzando os braços enquanto Chilly escalava até seu ombro.
— Esperem um só minuto! — Pedi, pousando as mãos sobre a testa por alguns segundos. — Alguém pode me explicar o que está havendo? E... Porque não me lembro de nada disso em meus outros dias das bruxas?
Celly, com sua calma iminente, se aproximou de todos nós de forma tão leve e natural que me pareceu por um instante que o vento a carregava. Minha pele formigou quando uma de suas mãos tocou meu rosto... Quero dizer... Sua pele era como seda quente de tão lisa e confortante.
— Oh, minha jovem, gostaria de poder responder a sua pergunta... — Disse, e dessa vez senti uma leve pitada de preocupação em seus olhos. — Mas a verdade é que nem eu sei a resposta para isso. Nada disso está certo, querida. Antes de obter suas respostas, preciso descobrir como os mortais conseguem ver tudo que está acontecendo...
— A prioridade agora é encontrar meu filho! — disse a professora, com um olhar tão reprovador que senti minhas pernas bambearem um pouco. — Vamos procurar pela cidade inteira se for preciso. E começaremos imediatamente!
— Paul e Micka podem te ajudar com tal tarefa. — Afirmou Marianne, piscando para a mulher de aura revolta. — Mas gostaria de ter uma pequena conversa com estes três aprendizes... — Agora, ela alternava o olhar entre Inna, May e Tie. Sim, eu me senti um tanto excluída com isso, mas apenas a obedeci: Aproximei-me de minha professora ao mesmo tempo em que Paul o fez e observei enquanto a anja a nossa frente desaparecia, junto a meus três amigos e um animal, em um clarão branco de luz.
Os próximos minutos se resumiram em planos. Eu e Paul procuraríamos pelas residências abandonadas, enquanto a mulher passaria de igreja em igreja. Sim, eu também não entendia o que espíritos materializados poderiam fazer em uma igreja vazia em plena noite de halloween, mas resolvi não discutir. Já havia feito o suficiente para chatear aquela mulher.
— Uuuurrr... Uuuurrrr... — Piou algo de cima de um dos postes, estendendo suas asas e se aproximando do solo enquanto rodopiava ao nosso redor.
— Owllie? — Paul pareceu um tanto mais surpreso do que eu. Talvez até assustado, se observasse seus olhos com atenção. — Não deveria estar ajudando os outros a distrair Occino?
Meu coração saltou por um único, longo e medonho segundo. Quero dizer, todo e qualquer tipo de ser está sem poder nenhum enquanto um gigante do mundo dos mortos corre pelas ruas semidestruídas de Boston fazendo sabe-se-lá-o-que com quem encontra pelo caminho.
— Filha!
Virei-me para a esquerda e encontrei três silhuetas apressadas carregando algo que mais parecia uma mochila pesada. Graças a Deus, isso queria dizer que minha mãe estava sã e salva.
— Peguem! — Paula lançou o que quer que estivessem carregando e Paul, por pouco, não o deixou cair — Abram!
Aguardei até que o garoto loiro o fizesse e o observei tirar alguns objetos estranhos de lá. E isso incluía uma estaca de madeira e alguns bastões muito parecidos com aqueles utilizados pelos policiais. Ele me jogou um desses, apesar de eu nunca ter jogado beisebol em toda a minha vida. Enfim, pendurou a mochila em um dos ombros e disse:
— Como está a situação pelo caminho?
— Terrível... — respondeu Isa, guardando em seu bolso algo que parecia um isqueiro. — Calçadas não existem mais, casas pegando fogo ou simplesmente desabadas e fomos perseguidas por cinco pessoas diferentes. Sem falar que fomos atacadas novamente por aquela mulher medíocre que controla as aranhas. Teríamos morrido se aquela senhora, Madellyne, não tivesse chegado bem na hora.
— E isso não é tudo! — Gritou Paula com os braços cruzados, como sempre fazia quando estava frustrada com algo ou queria atenção de alguém. — Havia corvos na casa de Jennifer, e eles tentaram... Devorar-nos! Bem, pelo menos eu acho. Era como se eles fossem dezenas de chaves e outros objetos de metal voador e nós três fossemos um conjunto de imãs gigantes com pernas e braços!
— E aqueles idiotas quebraram o último conjunto de esmaltes fosforescentes que eu trouxe para Boston! — Rosnou Isa, agora batendo com um dos pés no chão. E só então percebi que ela usava sua bota negra de salto que se erguia até a canela, que eu não via há muitos anos. — Sem falar que meus batons vermelhos estavam juntos com aqueles malditos potinhos coloridos!
— Escutem, escutem! — Chamou Paul, para que ambas as garotas parassem de tagarelar tanto. Pela primeira vez na noite toda, eu agradeci a ele por algo que fez. — São meia-noite e meia. Isso quer dizer que os mortos só têm mais meia hora de liberdade até que os portais se fechem!
Portais...
Certa vez, em meio a uma conversa na velha mansão abandonada, Paul me disse que todo e qualquer portal se abriria para o nosso mundo durante a guerra do eclipse. Por um segundo, imaginei como serão as coisas quando os espíritos aprisionados — aqueles que não têm permissão para vir a este planeta — estivessem perambulando por aqui junto a anjos, demônios e encarnados lutando pela própria “sobrevivência”. A imagem de milhares de Occinos juntos a centenas de materializados não agradou muito minha barriga, pois ela começou a se remexer.
— Onde estão May e os outros? — Perguntou minha mãe.
— Com Celly. — Respondi. — Não sabemos para onde foram ou porque apenas os três foram com ela... — Revelei, ainda me sentindo excluída por tal acontecimento. — Mas devem estar seguros com ela.
— Precisamos nos esconder por algum tempo até que tudo volte ao normal. — sugeriu Paul. — Provavelmente não se lembrarão de nada disso daqui a alguns minutos, então não se preocupem!
— O que? — Gritei, adicionando um tom de injustiça à atmosfera. — Vamos esquecer de tu... Espere, e você?
— Sou um encarnado, Micka, — Lembrou-me o rapaz loiro. — Já sei de muita coisa que não deveria saber. Os anjos do tempo não se preocupam mais comigo... Não sou mais vivo para que escondam algo de mim.
Percebi que ele não se orgulhava disso, assim como eu estava realmente irada por saber que alguém tocaria em minhas memórias. Mas Paul parecia bem pior do que eu. De certa forma, acho que ele gostaria de estar realmente vivo. Vivo como... Qualquer um de nós. Nós, que não damos valor ao que realmente importa. Nós, que vendemos a vido por coisas tão superficiais... E, de alguma forma, na disso importa na hora que deixamos este mundo.
Nós... Não levamos dinheiro, diamantes, celulares... Nada. Não seremos ninguém mais uma vez. Ah, percebi o quão egoísta tenho sido durante toda a minha vida. O quão egoísta todos tem sido. Ninguém enxerga o que devemos mesmo dispensar e o que devemos aprender.
Agora, olhando para a face arrependida por trás daqueles olhos azuis que tanto me atormentavam, percebi o que estava faltando...
Paul estava em uma bela emboscada... Uma armadilha própria mais perigosa do que a que qualquer um de nós pensou em um dia possuir. Ele, preso a este mundo para sempre pelo simples fato de nunca ter a devida coragem para cumprir sua missão.
Não, ele nunca faria isso...
Nunca tocaria um dedo em May que fosse para feri-la...
Jamais...

(continua...)

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