-QUEM ESTÁ AÍ? - Ele recuou cauteloso, e parou de respirar ao ouvir mais alguns “tic-tacs”. - Droga! - Gritou Tie, jogando-se atrás de um largo balcão no exato momento em que algumas dezenas de aparelhos telefônicos explodiram e estouraram os vidros de suas vitrines.
Mais alguns alarmes dispararam, ecoando pelo edifício solitário.
-AAH... PARE! PARE, PARE, PARE!!!
As portas de ferro que bloqueavam as saídas desapareceram, deixando o caminho livre. O garoto, antes mesmo de pensar, correu para fora. Não só da loja, mas do shopping!
Tie agora invadia uma lanchonete do outro lado da rua chamada “Oásis for my urban juice”. De alguma maneira o garoto havia reconhecido o lugar, mas ele não conseguia se lembrar de onde e como havia registrado tal cena. De qualquer forma, ele não gastou muito de seu tempo no local, apenas encheu com hambúrgueres embalados em papel alumínio uma pequena mochila azul-escura que estava jogada em um dos cantos da loja e saiu do estabelecimento.
-Destruam-na! - A voz misteriosa veio do nada.
Em uma fração de segundos, a nova cidade abandonada havia sido substituída por uma cidade em chamas e em clima total de guerra. As cores haviam partido, estava tudo em um tom acinzentado, como em um filme muito muito antigo. Prédios destruídos, postes caídos, fogo liderando pelo menos um terço do local, e gritos.
Muitos gritos!
A cidade não estava mais solitária. Havia centenas de pessoas, também em cor cinza, correndo, gritando e chorando desesperadamente, a não ser por um enorme grupo de pessoas que se embaralhavam em um canto da calçada... Estavam cercando alguém!
Tie encarou o céu por um instante... Um grito de pavor subiu a garganta do garoto. As estrelas dividiam o cenário com um grande número de auras que se batiam e se chocavam constantemente. O jovem não conseguia identificar o que eram auras e o que eram sombras, pois não havia cores ali também.
Nesse instante uma voz grossa e assustadora chamou sua atenção. Vinha de uma das pessoas que formavam o círculo:
-Você pecou... Desonrou a bíblia, o nome do senhor e o povo da fé...
Tie aproximou-se lentamente, percebendo logo que aquelas imagens eram como hologramas gasosos e intocáveis. O homem continuou:
-Mas agora nós te pegamos... – O padre de casaco vermelho e preto com capuz de mesmas cores disse. – Como previsto, não é mesmo? - Ele riu. - Bem, de qualquer forma eu preciso ir, Madellyne e sua querida May precisam receber uma visitinha... – Ele olhou para um outro homem que portava uma tocha acesa. – Queimem-na!
Este último nome martelou o coração de Tie ao ser pronunciado. Ele imediatamente correu para ver o rosto da pessoa a ser morta, mas parou ao reconhecer uma voz.
-NÃO, CLOE NÃO! – Gritava repetidamente o rapaz loiro que era carregado por um par de homens para longe do tumulto.
-Paul?
* * *
-Paul... Ingênuo... É claro que sou eu!
-Não... – Ele recuou, preparando-se para um ataque. – Não é você. Quer dizer... Não pode ser!
-E porque não? Você não me viu morrer na guerra, viu? Quando voltou, eu havia desaparecido. E aqui estou eu!
-Não, não, não... Você não é real, você é...
-Uma armadilha! – Gritou uma voz feminina vinda de trás do rapaz. – Eu te odeio Paul... Mas você precisa me tirar daqui! Não acredite nela, tem uma bruxa na mansão!
E lá estava Inna: Suas roupas sujas e rasgadas com folhas secas por toda a parte; Cabelos descuidados e despenteados com um tom rebelde superficial; Mãos e lábios trêmulos e demonstrando fraqueza; E uma voz rouca que desaparecia rapidamente no ar.
Em outras palavras, ela estava acabada!
-Johann? - Paul se aproximou da jovem e a segurou no exato momento de seu desmaio.
-Se livre dela, Paul! Você ainda me ama, e eu sei disso... Mate-a e fuja comigo! Vamos fugir da guerra... Vamos fugir das mortes, da violência... Você não terá que perder mais ninguém! Desta vez eu não serei perseguida durante a guerra e...
Paul sentiu-se aliviado de alguma maneira e segurou Inna com mais força:
-Bela tentativa, Kerra, mas Cloe e Madellyne morreram antes da guerra!
E então a figura de Cloe se transformou em uma espessa fumaça negra com alguns pontinhos roxos e outros pontilhados rosa. Uma mulher surgiu no lugar alguns segundos depois:
-Continua atento, rapazinho!
-O que faz aqui? Não deveria estar lutando com as bruxas da causa?
-Éh... Bem, na verdade agora eu tenho meu próprio trio!
-Trio?
-As bruxas minguantes!
Paul soltou risos altos, mesmo ainda estando nervoso:
-Vocês, bruxas, tem muita criatividade!
* * *
-Minhas queridas filhas... – A mulher das aranhas carregou Micka até uma antiga caverna subterrânea localizada embaixo da mansão abandonada. – Vejo que temos uma fugitiva, não é mesmo?
A caverna era úmida demais e liberava um terrível fedor de mofo misturado com chulé. Havia dezenas de estalactites e estalagmites que assustariam qualquer pessoa viva. Aranhas de todos os tamanhos e espécies teciam suas teias por entre as rochas e, de vez em quando, caminhavam de um lado para o outro do local como se estivessem procurando por algo.
Sem esperar muito, a dama jogou o corpo inconsciente de Micka entre duas pequenas estalagmites e logo se voltou para a entrada da caverna, que se resumia a uma larga escada aonde se chegava a uma porta de madeira quadrada que dava para o chão da sala dos móveis. Assim que chegou ao segundo degrau, disse:
-Cuidem da moça! – E continuou subindo as escadas sem olhar para trás.
As pequenas criaturas ficaram instantaneamente eufóricas. Todas, de uma só vez, começaram a se aproximar da menina desmaiada... Espere... Ela não está desmaiada!
Micka levantou-se rapidamente e esmagou algumas aranhas com seu pé. A jovem fingira o desmaio o tempo todo! Apenas esperou o momento certo para tentar fugir. Muito esperto, não?
-Tomem isso suas... Suas... Argh! – Ela continuava pisoteando e, por conseqüência, esmagando dezenas e dezenas das aranhas. – EU ODEIO VOCÊS!
Mais aranhas surgiam no mesmo ritmo em que suas companheiras eram mortas pela jovem adolescente, e então Mickaella desistiu das criaturinhas e correu para uma parte mais profunda da caverna. Ela queria muito sair dali, mais alguma coisa em sua intuição lhe dizia para espionar em todos os lugares.
* * *
-Largue ele!
Tie logo parou de gritar. Ninguém o ouvia, via, ou sentia. Ele não estava ali de verdade, estava apenas observando... De alguma forma.
-AAAAAH... NÃO, NÃO... POR FAVOR... DEIXEM MINHA FAMÍLIA FORA DISSO! NÃO... MINHA FILHA NÃÃÃO!!! – Gritava a mulher a quem o povo da fé cercava.
Espere um pouco... Filha?
Tie tentou ligar os fatos...
“-Não! Cale a boca! Acha que sou idiota? Pelo pouco que ouvi, eu consegui deduzir a verdade... Consegui, Paul! Eu sei que a culpa por eu não ter uma mãe é sua e daquela vagabunda da Marianne! Vocês a mataram... Do mesmo jeito que pretendem me matar...
E é por isso que estão me protegendo da lua minguante! Por que precisam que minha vida permaneça ativa até a tal guerra, não é? Precisa me manter viva até o sacrifício!
-EU NÃO MATEI A SUA MÃE!”.
E é por isso que estão me protegendo da lua minguante! Por que precisam que minha vida permaneça ativa até a tal guerra, não é? Precisa me manter viva até o sacrifício!
-EU NÃO MATEI A SUA MÃE!”.
-Ele não estava mentindo... – Sussurrou o garoto de cabelos cacheados marrom-claro.
-SHRIIIIEEER...
-Essa não... – Tie reconheceu o grito demoníaco.
Uma grande lufada de vento quase derrubou o garoto. E, alguns segundos depois, o grande morcego sobrevoava todo o cenário enquanto capturava e esmagava diversas auras.
-Recuar. Recuar! – Gritou o homem que segurava a tocha alguns segundos antes enquanto corria junto aos outros religiosos para longe.
Tie, enfim, conseguiu ver a mulher que era ameaçada de morte. A propósito, ela havia conseguido escapar graças ao morcego.
-MAY! – Ela gritou, sem perder tempo, e começou a correr na direção oposta a dos religiosos.
-May! – Tie repetiu em sussurro, como se estivesse buscando algo para pôr fé, enquanto se convencia a seguir a mulher.
De um momento para outro, tudo desapareceu. A guerra, as auras, o demônio, os religiosos... Até mesmo a mulher que corria em busca de May havia deixado o local.
Era só mais uma cidade grande e solitária outra vez.
-O que...? – Algo brilhou no céu vazio acima de Tie. Uma espécie de globo de luz azulada com alguns rajados brancos. O globo luminoso liberava uma espécie de fumaça fraca de mesma cor, e sua luz era tão linda...
Aproximou-se de Tie, e então começou a liberar um brilho mais forte. Era como se o globo fizesse parte do garoto. Tie se afastou, com medo, e o globo se aproximou mais ainda.
- Mais que porcaria é essa?
O ser não identificado tocou na mão esquerda de Tie, que logo foi envolvida pela fumaça que o globo liberava. A fumaça enroscava o braço do rapaz como uma serpente costuma fazer com sua presa, mas Tie não se sentia mais com vontade de recuar. Sem perceber, o garoto estava completamente envolto pela fumaça. Uma luz azulada intensa preencheu o vazio da cidade, e então a fumaça desapareceu.
-Urrr... – crocitou a coruja parda e preta coberta por uma fraca luz azul-clara que logo deixou o animal.
Tie não conseguia falar nada. Ele sabia exatamente o que era aquilo. O que ele não entendia era: Porque sua aura resolveu se revelar aqui? E como ela se transformou em um animal já que Celly havia dito que isto era possível apenas com magia negra?
De qualquer forma, O rapaz deixou que a coruja pousasse em sua mão esquerda. Ela o fitou, parecendo sonhadora. Era um bebê coruja.
-Urrr.
-Sei bem que não é um bom jeito para me apresentar, mas... – Ele aproximou o animal recém-nascido de seu rosto. – Eu preciso sair daqui! Pode fazer isso? Por favor... Diga que sim!
-Urrr.
-Aff... Olhem para mim: Falando com uma coruja!
-Urrr. Urrr. – O animal abriu suas asas pardas e a mesma luz azulada voltou ao cenário. Não se via mais nada a partir de agora.
Após alguns segundos “azuis”, Tie percebeu que já conseguia ouvir alguns passos reais, e então começou a sentir frio.
Pequenas dores de mordidas e uma leve dormência possuiu o rapaz. Tie estava recuperando seus sentidos.
* * *
-Kerra idiota!
Tie ouviu a voz da mulher se afastando enquanto ele tentava reabrir seus olhos.
-eu mesma cuidarei disso! – A dama das aranhas caminhou até o hall, deixando a mansão logo após.
-argh... – Tie, enfim, conseguiu erguer os braços para ficar de joelhos. Alguns segundos depois de perceber sua respiração lenta e pesada, o garoto conseguiu se levantar.
Sua cabeça estava pesada, e ele tossia de segundo em segundo. Seu coração batia tão rápido que parecia querer escapar do corpo jovem.
-Urrr. - A jovem coruja parda se encontrava parada na janela quebrada da sala vazia e olhava diretamente para Tie. – Urrr. Uuurrr.
-Obrigado! – Ele sorriu. – Ainda não acredito que tenho minha própria aura!
-Urrr.
-Éh... E que eu não entendo a linguagem dela.
Tie acidentalmente desviou seus olhos do animal, conseguindo ver Paul ser atacado pela mulher das aranhas do lado de fora da velha casa. De relance, ele pode perceber alguém nos braços do rapaz. Alguém inconsciente. Seja essa pessoa quem quer que fosse, Paul tentava proteger dos ataques sombrios da bruxa.
Logo, o rapaz loiro foi atingido na perna por uma esfera de magia negra, que colou seu pé no chão com uma grande quantidade de teia de aranha que se soltava da concentração de poder proibido.
Paul, parecendo atordoado, deixou que a garota caísse no chão.
Tie descobriu que a pessoa adormecida era uma garota quando seus longos cabelos cacheados se debateram durante a queda. Mesmo assim, ele ainda não conseguia ver o rosto da menina de roupas pretas rasgadas.
-Urrr. – A coruja crocitou mais uma vez.
-O que? O que foi?
-Urrr! – O animal flutuou até um dos cantos do grande salão. Ele pousou bem encima de um alçapão.
-Uma passagem? – Tie se aproximou lentamente do alçapão. – Mais o que isso faz aqui?
-Urrr. – A coruja se afastou um pouco do grande quadrado de madeira para que o garoto pudesse abri-lo.
-Está destrancado! – Tie encontrou uma corda velha, e puxou-a. A passagem quadrada se abriu.
Sem muito esforço o rapaz conseguiu identificar o que pareciam alguns degraus de escada. Ele desceu pelo quadrado, e então desceu os degraus, resultando em uma larga e enorme caverna subterrânea.
-Urrr. – Piou a ave, avançando sem medo até a área menos iluminada do local.
-Espere! – Tie seguiu correndo o animal, percebendo uma porta dupla no final da caverna.
Algo fazia muito barulho do outro lado da porta. Era um som humano... Um choro, talvez. De qualquer forma, era perceptível ser um som de sofrimento.
-Vamos?
Tie podia jurar que viu a coruja assentir.
-Cara... – Ele sussurrou. – Preciso me tratar!
Sua mão direita foi de encontro à maçaneta. Ele a girou, empurrando a porta para que pudesse ver o que havia lá dentro.
Outro grito de horror subiu a garganta do garoto. Seus olhos se encheram de lágrimas.
Postar um comentário